Ensaio por Ernandes Zanon, Maria Marta Tomé e Rosana Paste
Resumo: Este ensaio propõe uma reflexão crítica, articulada com a pesquisa memorial expositiva e sociocultural do Espírito Santo, buscando transportar elementos que mantém atualizado o diálogo crítico com o presente. Traz a trajetória do artista Frans Krajcberg em terras capixabas, com a realização de 02 exposições nas décadas de 1980 e 1990, nas galerias Homero Massena e Usina, em Vitória/ES. Relata a maneira como o Estado do Espírito Santo lidou com o gesto de doação de duas obras de arte. A gravura está preservada como acervo público e a escultura sofreu com a depredação e o descaso até ser devolvida ao artista. Krajcberg ainda propôs uma fundação com doação de acervo, que levaria o estado aos circuitos da arte contemporânea mundial.
Este ensaio propõe uma reflexão crítica, articulada com a pesquisa e difusão da memória expositiva e sociocultural do Espírito Santo, visto que vem transportando elementos que compõem a esfera pública e que mantêm diálogo com o presente.
Os registros da presença de Frans Krajcberg no Estado do Espírito Santo se dão pela realização de duas exposições. A primeira na Galeria Homero Massena (GHM), em 1978, e a outra na Galeria Usina de Arte Contemporânea¹, em 1986, ambas em Vitória/ES. Esta presença krajcberguiana se revela na memória histórica dessas exposições.
Frans Krajcberg (Polônia,1921 - Brasil, 2017) foi um artista exponencial. Sua arte original e sui generis manteve a indignação contra a destruição da natureza, como leitmotiv. Artista incansável, Krajcberg atuou em pautas planetárias de natureza social, econômica, cultural, ambiental, humanitária e moral, trabalhando com ressignificação de elementos naturais, em processos e experiências estéticas, legando à humanidade um acervo artístico imensurável, composto de linguagens diversas e de gestos políticos que reverberam na esfera da arte contemporânea mundial como uma práxis artísticas e eco ambientalistas.
As primeiras informações para esse texto foram colhidas na GHM, em 2019. Objetivou-se o levantamento de dados documentais, históricos e o registro do estado atual de conservação de uma gravura doada pelo artista que integra o acervo da galeria. Foi acessada a reserva técnica que contém parte da memória da exposição, e feito o registro fotográfico desses documentos. O acervo contém livro de visitas da exposição, exemplar do catálogo e de jornais impressos, e, a gravura em relevo gofrado².
No livro de assinatura da exposição está afixado um folder com texto de abertura assinado pelo jornalista e crítico de arte gaúcho Jayme Maurício (1926 -1997), que faz uma análise sobre a produção artística de Krajcberg.
Empregando os meios plásticos mais diversos, Frans Krajcberg tem mantido uma fidelidade notável a uma concepção central excepcionalmente rica, construída em torno de uma pesquisa incessante de elementos da natureza, no reino mineral e no reino vegetal. (MAURÍCIO, 1978)
Páginas do livro de assinatura da exposição Gravuras e Esculturas de Krajcberg, 1978, Vitória/ES. Fonte: Galeria Homero Massena, Vitória/ES, 2019.
A gravura que integra o acervo da GHM, vinculada à Secretaria de Cultura do estado do Espírito Santo (Secult), foi produzida na técnica de relevo gofrado, está em bom estado de conservação e é um dos exemplares que integrou a exposição individual Gravuras e Esculturas do artista realizada pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado da Cultura e Bem-Estar Social, Fundação Cultural do Espírito Santo, no período de 09 a 23 de maio de 1978.
Gravura em relevo gofrado, Frans Krajcberg, Série 1/10, 1976. Fonte: Acervo Galeria Homero Massena, Vitória/ES, 2019.
Esta gravura foi exposta, posteriormente, na exposição Papel do Acervo, comemorativa do 37º aniversário da GHM, em 2014, e sua imagem está disponível para consulta online.
Página do catálogo da exposição Papel do Acervo, em que consta a imagem da gravura de Krajcberg, Galeria Homero Massena, 2014. Fonte: Galeria Homero Massena, 2019.
Na época da realização da exposição na GHM, o artista doou também ao Governo do estado do Espírito Santo uma escultura em madeira, de grande porte, produzida a partir de tronco de árvores queimadas da região da Amazônia, e pintada com pigmento natural. Algumas matérias jornalísticas locais repercutiram os desdobramentos sobre o estado de conservação dessa escultura, que por descaso resultou na devolução da obra ao artista, ainda na década de 1980. A escultura foi transportada pelo extinto Departamento Estadual de Cultura - DEC ao Sítio Natura, Nova Viçosa/BA, onde o artista residia e produzia suas obras, para restauração, após articulação da classe artística, ecologistas e intelectuais capixabas, que exigiram uma postura responsável quanto ao bem artístico.
Foi possível localizar uma imagem da escultura na matéria jornalística Obra de Krajcberg é irrecuperável, ilustrada com uma foto de Gildo Loyola, fotojornalista capixaba, que mostra a obra ainda instalada na Rodoviária de Vitória. Posteriormente, a escultura foi abandonada durante anos, em um tanque de areia, no local. A reportagem descreve a trajetória da escultura que saiu da responsabilidade da extinta Companhia de Melhoramento e Desenvolvimento Urbano - Comdusa, na época administradora da rodoviária, passou para o DEC, que na época era dirigido por Maurício Silva, no período de 1987 a 1991, que por sua vez a encaminhou para restauro, em Nova Viçosa/BA. No entanto, “a frustração veio do próprio escultor: sua obra é irreparável. Os cupins e a ignorância venceram”, conforme descreve a reportagem.
Matéria jornalística Obra de Krajcberg é irrecuperável, com detalhes da imagem da escultura instalada na Rodoviária de Vitória, sem identificação de veículo, autoria ou data de publicação. Fonte: GHM, Vitória/ES, 2019.
Em 1988 foi realizada a exposição individual Krajcberg: obras recentes na Galeria Usina Arte Contemporânea³ que pertencia ao empresário e marchand capixaba Márcio Espíndula, e funcionou no período de 1986 e 1989. A exposição trouxe esculturas inéditas do artista, que ultrapassavam 3 metros de altura. Também acabou impulsionando a possibilidade de doação do acervo e a criação de uma fundação de Krajcberg no estado do Espírito Santo.
Escultura exposta na Galeria Usina, Frans Krajcberg, 1988, pigmento sobre madeira, 280 x 70 x 70 cm. Fonte: Catálogo SOBREVITÓRIA Usina Arte Contemporânea: 25 anos depois, 2011, p. 11
A matéria do jornalista As obras de um mestre que ama nossa terra, de Evandro Demuner, publicada no Caderno AT2, do jornal A Tribuna, de 29 de setembro de 1988, fala sobre a exposição que ocorreu entre 29 de setembro a 22 de outubro de 1988, destacando que todas as obras expostas eram produzidas a partir de materiais provenientes das regiões da Amazônia, Minas Gerais e Mato Grosso.
Matéria jornalística As obras de um mestre que ama nossa terra. Publicada no Caderno AT2, jornal A Tribuna, Vitória/ES, 1988. Fonte: Acervo GHM, Vitória/ES, 2019.
Em 1994, foi criada a Fundação Krajcberg, em Vitória/ES, reunindo o Centro de Arte e Natureza e o Centro de Estudos do Meio Ambiente. No artigo do artista Nenna B (2010) O Destino após o Cais: ensaio sobre a arte contemporânea na região capixaba, é relatada a exposição de Krajcberg na galeria Usina, em 1988, e a aproximação entre ele e Márcio Espíndula, que resultou nas primeiras ações para viabilizar a parceria que garantiria a criação da fundação. Nenna relata que Roberto Pontual, destacado crítico de arte, foi convidado para conceituar a instituição, propondo que ela se tornasse uma “ponte entre a arte e a ecologia”, em um encontro com artistas no Centro de Artes da Ufes, em 1988. A fundação foi lançada com grande pompa no dia 04 de outubro de 1993, e contou com personalidades de destaque nacional, como o empresário e escritor José Mindlin (2014-2010), a artista plástica Tomie Ohtake (1913-2015) e o empresário e colecionador Gilberto Chateaubriand. O projeto da Fundação Krajcberg não foi adiante, resultando até mesmo em denúncia no Ministério Público Estadual, criando grandes transtornos para Krajcberg, que indignado diz que não queria nem mais ouvir a palavra fundação, em entrevista para a Revista Y (1994).
Na verdade, vou colocar um ponto final. Eu estou me aborrecendo muito. Eu não sabia que alguém que se oferece para fazer um movimento cultural, oferece todos os seus trabalhos, vira criminoso, vira fugitivo. Eu tenho em cima de mim, processos de coisas absurdas. Quatro processos, e acho que vão aumentar ainda mais. Mas não tem um processo do ponto de vista cultural, que se preocupe em continuar com a fundação. Não tem nenhum. Primeiro se interessam pelo dinheiro, que eu nem sei o que foi feito. Mas agora eu vou saber. O diretor é o responsável, ele cuidava de tudo. Que eu nem sabia o que estava sendo feito e agora quero que se esclareça tudo. Que não é possível eu ver tanta coisa que está acontecendo aqui em Vitória. [...] Já estou arrumando minha mala, para ir para a cadeia... Vitória também não compreendeu a importância dessa fundação e não vai compreender tão cedo. E por isto estou te falando: é a última entrevista que estou dando aqui em Vitória. Eu tenho mil coisas mais importantes para fazer, do que me chatear aqui em Vitória. É injusto. A palavra fundação não quero nem mais ouvir. E ponto final! (NENNA, 2010, apud KRAJCBERG, 1994).
De acordo com a percepção de Krajcberg, o estado perdeu a oportunidade de ter “uma grande biblioteca internacional sobre arte e meio ambiente” e de ser um catalisador de “movimentos artísticos-culturais ligados a organismos internacionais de informação e defesa ambiental”, pelo fato de os representantes das esferas públicas envolvidas - a saber, governador Albuíno Azeredo (1945-2018) exerceu mandato entre 1991 e 1995 (PDT), e Paulo Hartung (PSDB) prefeito nos anos 1993 a 1997- não estarem dispostos a dividir os louros da fundação.
As exposições realizadas, a doação de duas obras de arte, e em especial, o desejo de que o estado do Espírito Santo sediasse a sua fundação, foram gestos krajcberguianos que marcaram a presença forte de um artista planetário em solo capixaba. No entanto, ao rememorar essa trajetória, é inevitável não reverberar o lamento do próprio artista, pois esse período, caracteriza o descaso e a inoperância do estado. A escultura e a Fundação Krajcberg tiveram o mesmo destino: os cupins e a ignorância venceram.
Notas de rodapé ¹ Usina de Arte Contemporânea, galeria do colecionador Márcio Espíndula, funcionou de 1986 a 1989), em Vitória. Fonte: <https://secult.es.gov.br/maes-abre-exposicao-com-obras-da-antiga-galer> Acesso em 26 de março de 2021. ² Relevo gofrado: tipo de impressão feito pela captura de uma textura em papel especial. No caso de Krajcberg, a técnica foi atribuída pelo crítico Pierre Restany, para suas gravuras produzidas a partir da impressão de elementos naturais sobre papel japonês. ³ Fonte: <https://secult.es.gov.br/maes-abre-exposicao-com-obras-da-antiga-galer> Acesso em 26 de março de 2021.
Referências bibliográficas
NENNA. O Destino após o cais: ensaio sobre a arte contemporânea na região capixaba. Vitória, Espírito Santo, 2010. Disponível em: <https://issuu.com/universonenna/docs/nenna_odestinoaposocais>. Acesso em 10 mar. 2019.
SCOVINO, Felipe. Frans Krajcberg. São Paulo: Arauco, 2011.
APPEL, Camila. Artista e Ecologista, Frans Krajcberg era como um animal selvagem. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 de novembro de 2017. FolhaPress. Folha Digital. Ilustrada, Artes Plásticas. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1935906-artista-e-ecologista-frans-krajcberg-era-como-um-animal-selvagem.shtml>. Acesso em: 01 mar. 2019.
FERNANDINO, Fabrício José. (R)Evolução Frans Krajcberg: o poeta dos vestígios. REVISTA UFMG. Belo Horizonte, v. 21, n. 1 e 2, p. 260-277, jan/dez. 2014. Disponível em: <https://www.ufmg.br/revistaufmg/volumes/21>. Acesso em 18 abr. 2018.
MORAIS, Frederico. Frans Krajcberg: a arte como revolta. 2. ed. Rio de Janeiro: GB Arte, 2004.
Mestre em Artes, área de concentração: Teoria e História da Arte, Ufes (2020). Pós-Graduação em Planejamento Educacional, Universidade Salgado de Oliveira/RJ (1997). Graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Ufes (1994). Professor na Faculdade Estácio de Sá/ES-Disciplinas: Antropologia Cultural e História da Cultura (2002-2005). Professor substituto, Ufes - Centro de Artes/Disciplina Fundamentos da Arte na Educação (1994).
Graduação em Artes Plásticas - Bacharelado, Ufes (2001). Mestra em Teoria e História da Arte (PPGA-UFES, 2020). Integra o Grupo de pesquisa Crítica e Experiência Estética/UFES. Possui aperfeiçoamento em: Programa de Capacitação Gestão de Equipamentos Públicos-FGV/2013. Experiência em: gestão pública área cultural-Serra, Vitória e Cariacica/ES/2000-2016. Atuação: elaboração/captação de recursos leis de incentivo cultural. Produção e execução de projetos artísticos no Equipamento cultural Espaço Ecoternura-Serra/ES que integra a CO_OP_gv.
É artista plástica. Possui graduação em Artes Plásticas - Bacharelado, Ufes (1992) e Mestrado em Educação (PPGE-UFES, 2010). É doutora em Educação (PPGE-UFES, 2017). Livros eumuseu rosana paste/2014 e Catálogo Rosana Paste/2004. Projeto Rumos Visuais do Itaú Cultural-1999/2000 - SP, RJ, CE, PR; Coletivas nos Congressos de Mosaico Contemporâneo-Egito/Japão/Itália/Brasil-1994/1996/2000/2020. Última individual Galeria EmParedeContemporânea-Vitória/2017. Grupo de Pesquisa Criatividade Educação e Arte GPCEAR/FAPES/CA/UFES. Atualmente é coordenadora do curso de Artes Visuais da Ufes e é professora dos cursos Artes Visuais e Artes Plásticas (UFES/1994-2021), licenciatura e bacharelado, respectivamente.
Esta publicação faz parte da seleção realizada a partir da chamada de ensaios sobre Circuitos da arte: Memórias e Expansões.
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