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Arte e vida em obra: a poética biografemática de Rubiane Maia

Sobre a dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, sob orientação da Prof.º Dr.º Ricardo Maurício Gonzaga

por Lindomberto Ferreira Alves


Capa da dissertação "Arte e vida em obra: a poética biografemática de Rubiane Maia (2020), de Lindomberto Ferreira Alves
Arritmia, 2012 Rubiane Maia Performance Fotografia: Chloe Gobira

Inspirados na assertiva de que “criar é criar a si mesmo” (BOURRIAUD, 2011, p. 14) – no sentido foucaultiano da expressão, vinculado à noção de cuidado de si (FOUCAULT, 1985) –, bem como atentos à premissa de que o próprio ato de criar se torna obra (ROLNIK, 2000) – processo sem fim que toma a vida como experimento, que assume a criação de si como uma obra a ser investida (NIETZSCHE, 1992; 2001), ou seja, que faz da sua própria vida uma obra de arte (FOUCAULT, 1984; 1985) – um contingente significativo de artistas, de diferentes contextos nacionais, vem vislumbrando, e muito seriamente, na conjugação de um pensamento crítico acerca de nós mesmos e do modo como estamos conduzindo as nossas vidas, um dos princípios motores à formulação de saberes-fazeres artísticos nos quais as fronteiras entre arte, vida e obra têm sido constantemente e intencionalmente redimensionadas, tensionadas e esmaecidas.


Morre-se, 2009 Rubiane Maia & Amanda Freitas Performance Fotografia: Tete Rocha

O que equivaleria a dizer que um dos múltiplos e difusos eixos engendrados nas adjacências das mutações entre arte, vida e obra, e em disputa no tabuleiro da arte na condição histórica do presente – travadas, portanto, no corpo-a-corpo cotidiano desses artistas com os dispositivos que regem as relações sistêmicas das artes – diria respeito justamente ao procedimento na qual a arte desvia de suas leis internas, e a atenção estética se volta à extração do poético da vida. Atenção essa que ao buscar refletir a polifonia das narrativas contemporâneas que exortam a escuta de “perspectiva[s] mais expansiva[s] de relações entre a arte e a vida” (SILVA, 2011, p. 113), problematiza, flexiona e institui um campo de visibilidade, dizibilidade e compreensão de saberes sobre as políticas que incidem sobre os modos de vida que excedam suas formas dominantes de representação na arte e no âmbito mais amplo da política.


À Flor da pele, 2011 Rubiane Maia Performance Fotografia: Elisabeth Leal.

De acordo com esse padrão de intenções, se por um lado chama a atenção, nas práticas artísticas instituídas no cerne dessa problematização – principalmente aquelas relacionadas às linguagens ligadas ao corpo, de modo especial, ao campo da performance – a afirmação de outras narrativas, bem como de novas e potentes iconografias para além do imaginário de poder hegemônico da arte (VIEIRA JÚNIOR, 2019); por outro chama atenção, ainda mais, o caráter sutilmente incisivo pelo qual essa afirmação é agenciada em determinadas trajetórias artísticas, à medida que colocam em jogo o tensionamento do saber-fazer artístico como “laboratório ético, estético, poético e político do sensível, da heterogeneidade, do outramento” (SILVA, 2011, p. 8), e cuja possibilidade de realização estaria ligada às intenções poéticas de formalização da dimensão estética da própria “vida como potência de criação, como potência de possíveis” (DOMINGUES, 2010, p. 22) - via reflexão do poder inquietante e provocador que o ser obra da obra de arte (AGAMBEN, 2013) estaria promovendo ao saber-fazer artístico na contemporaneidade. Questão que se torna tanto mais evidentes se essas trajetórias convocam o público ao compartilhamento do que Leila Domingues (2017, p. 183) chama de ethopoética; isto é, do compartilhamento da “criação, [d]a constituição, [d]a invenção de si como sujeito, em suas dimensões estéticas, éticas e políticas” – conduzindo a um tipo de simbolização e cognição não alienada entre arte, vida e obra, certamente muito mais diversa e complexa em relação ao atual status quo em que a lógica espetacularizada da arte é operada junto a realidade na atualidade.


Entre nós, 2012 Rubiane Maia Performance Fotografia: Quin Moya

Isto posto, há no Brasil, e mais especificamente no Estado do Espírito Santo – entre várias trajetórias artísticas que realizaram e/ou realizam trabalhos rigorosos e vigorosos sob este prisma – um caso exemplar, o da artista multimídia contemporânea Rubiane Maia (Caratinga/MG, 1979). Rubiane Maia é um dos nomes centrais dessa geração de artistas capixabas surgidos no começo do século XXI, tornando-se referência para as gerações que se seguiram. Trata-se, inclusive, de um dos poucos nomes das artes visuais no Espírito Santo a conseguir, até o momento, expressiva inserção no cenário nacional e internacional, participando de diversos eventos importantes no campo das artes performáticas, no Brasil e em outros cantos do mundo – a ponto de se consolidar, atualmente, como uma das mais reconhecidas performers no cenário artístico contemporâneo, sobretudo dentro da geração de performers brasileiros e estrangeiros a qual pertence.


Decanto, até quando for preciso esquecer, 2013 Rubiane Maia Performance Fotografia: Gabriel Bolzan

Ao longo dos seus recém-completos quatorze anos de carreira, Rubiane Maia não hesitou pôr-se em jogo na constituição de sua trajetória artística, sempre fazendo uso de seu corpo e de suas próprias narrativas pessoais de vida como principal objeto e meio de sua arte. Trata-se, é verdade, de uma asserção um tanto intrépida, mas, não de todo descabida. Isso porque, como se é possível aferir através desta dissertação de mestrado, estamos diante de uma artista que contínua e intencionalmente coloca vida e obra no mesmo plano de contágio – nisto que Sandra Mara Corazza (2010) chama de vidarbo, donde ao invés de vida e obra, tomadas em separado, ou uma como uma derivada e mesmo causa da outra, opera por meio de “Atos de Mutação” que põem vida e obra no mesmo plano, entendendo que o movimento de uma acabará por movimentar a outra, e vice-versa. Radicada no Espírito Santo desde os quatro anos de idade, e vivendo e trabalhando atualmente entre Vitória (Espírito Santo, Brasil) e Folkestone (Reino Unido), Rubiane Maia tem percorrido o mundo com seus trabalhos nas áreas da performance, vídeo, fotografia e cinema, explorando e apresentando a diferentes públicos as possibilidades de expansão das potências do corpo, alinhada à invenção de si (FOUCAULT, 2004a; 2004b; 2004c), por meio das mais diversas ações performativas.


Caminho do chá, 2014 Rubiane Maia Performance Fotografia: Joana Quiroga

Ações cujo foco de investigação artística e de construção poética volta-se à criação de formas de criação de si, e, em processo, tensionadas via os agenciamentos de seu universo temporal-espacial, principalmente afetivo. Aposta que, de um modo ou de outro, torna evidente, nesses quatorze anos de carreira, a constituição de uma poética cuja intencionalidade é, nas palavras da artista, ao se referir a seu ofício: “fazer uso do corpo para ampliar suas possibilidades de percepção para além do habitual, por meio de uma constante (re)elaboração de sua própria noção de território existencial (espacial, temporal, social, cognitivo etc.)” (SILVA, s/d). Com uma produção tão intensa quanto de forte luminosidade e potência, no repertório poético de Rubiane Maia aparecem temas como território existencial, que aproxima a noção de expriência à problemáticas contemporâneas veiculadas as questões do corpo, da memória, do espaço, do tempo, da sociedade, do cotidiano, da paisagem, de gênero, da linguagem, da ancestralidade, do autocuidado e da militância sensível. Temas que pululam de um conjunto de obras que reúnem sessenta trabalhos, se contados apenas os realizados entre os anos de 2006 e 2016, período que demarca os seus dez primeiros anos de carreira.


O jardim, 2015 Rubiane Maia Performance Fotografia: Tete Rocha

Assim, esta pesquisa tomou como objeto de estudo a trajetória artística de Rubiane Maia. Visando um recorte mais circunscrito, e tendo como aporte teórico a noção barthesiana de “biografema” (BARTHES, 1977; 1990; 2012), esta se deteve à análise das relações entre arte, vida e obra que perpassam a construção poética desta artista, entre os anos de 2006 e 2016. Buscou-se, portanto, investigar nos múltiplos registros processuais de Rubiane Maia – pessoais e artísticos – os deslocamentos do seu projeto poético, atendo-se no que nele diz respeito à singularidade dos modos com os quais a artista agencia o híbrido arte-vida-obra no campo de efetuações de seu saber-fazer artístico, inserindo-a, também, no contexto da arte contemporânea. Perseguimos a hipótese de que os processos criativos desta artista produzem determinados registros e resíduos, presentes nos interstícios de suas ações performativas, que permitem situar em perspectiva as intenções reveladas de um saber-fazer artístico que aciona a experiência estética como âmbito no qual, não só, se agencia um trabalho ético sobre si, mas, também, no qual a própria prática artística converge para tal proposta ética – proposta esta que, lembrando Hélio Oiticica e Lygia Clark, ao fazer dos processos de arte sensações de vida, busca lidar com as maneiras de viver, com a arte de viver.


Ponto cego, 2016 Rubiane Maia Fotografia Fotografia: Manuel Vason

Assim, longe de qualquer pretensão totalizante, e conectada nos pormenores e no descontínuo que pululam do território artístico-existencial desta artista – bem como apoiada nos pressupostos metodológicos do que Sandra Mara Corazza (2010) chama de “método biografemático”, no qual “a vida, ao invés de justificar a obra, é sobreposta a esta mesma obra que se atravessa na própria vida” (COSTA, 2011, p. 132), esta pesquisa é um convite para aproximarmo-nos das principais linhas de força poética de Rubiane Maia. Linhas que convergiriam para o exercício permanente de um ethos, território em que se é possível desarticular do que se acostumou a ser, de modo que se possa “aparecer diante de si mesmo estranho, áspero, alquebrado, ambulante, um balaio de muitos” (PRECIOSA, 2010, p. 52). Nosso esforço, aqui, caminhou no sentido de colocar o conjunto da obra de Rubiane Maia em circulação; dando visibilidade à sua produção, bem como resgatando a importância e a potência desses trabalhos, de modo a apresentá-los às gerações futuras. Espera-se que este esforço acenda o interesse e convide – ou, mesmo, seduza – o leitor a compor, com esses fragmentos, o desejo de outras novas escrituras sobre a produção artística de Rubiane Maia; contribuindo, assim, para a difusão de conhecimento sobre a arte contemporânea produzida por artistas capixabas, aqui e no mundo, em especial no campo da performance e do vídeo.


As referências bibliográficas podem ser encontradas ao acessar a dissertação.
 

A dissertação "Arte e vida em obra: a poética biografemática de Rubiane Maia", de Lindomberto Ferreira Alves, está disponível na íntegra no site do Programa de Pós-graduação em Artes do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo.


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