Clique na imagem para visualizar em tela cheia ou clique aqui para visualização 360º.
Fichas técnicas: Sem título, Leandra Espírito Santo, 2019. Instalação, 104 cabeças de gesso feitas a partir de molde do rosto, distribuição em grade, 3,5 m X 3 m, Residência Pivô̂ Pesquisa, São Paulo. Sem título - Série Processos, Jussara Marangoni, 2018. Técnica mista s/papel - 19,5 x 23cm. Retroceder, Élcio Miazaki, 2020. Vídeo (2’56’’). https://vimeo.com/441835472 Sem título – Série raiz.veia.afluente, Jussara Marangoni, 2019. Aquarela s/ papel, aquarela s/ parede, fotografia. dimensão variável. Crisálida, Ana Luísa Santos, 2012. Foto performance. Espelho, Marina Weffort, 2014. Tecido desfiado e alfinetes. 183 x 113 x 9 cm. Coito Solar, Lume Ero, 2015. Fotografia – (30x42cm) Despertar, Jacke Batista, 2020. Fotografia. Onirical Reflections, Anaísa Franco, 2012. Instalação, caixa de madeira, computador, espelho, software específico, Kinect.
Casa Corpo, Corpo Ninho
por Julia Zanon
As obras pretendem materializar conceitos relacionados a Casa Corpo, Corpo Ninho propondo um percurso que se inicia no cenário hostil e alienado contemporâneo, passa por diferentes espaços de reflexão sobre o corpo, o tempo e a memória e termina com o despertar do corpo sensibilizado por sua (re)tomada de consciência.
Na obra Sem título (2019), Leandra Espírito Santo apresenta uma instalação composta por 104 cabeças de gesso feitas a partir do molde de seu próprio rosto e distribuídas no chão em grade. Ao fazer uma produção em série de si mesma, Leandra está falando do desaparecimento da subjetividade. Em um cenário de intolerância às existências plurais, cada vez mais os valores, imagens e padrões a serem seguidos são agressivamente impostos e as especificidades condenadas pelo modelo de sociedade vigente. Esse trabalho foi apresentado em sua exposição individual “Só existo em terceira pessoa” (2019). Esse título é capaz de sintetizar a sua obra: se só existo em terceira pessoa, estou distante da minha primeira pessoa – o próprio eu.
A obra Sem título (2018), retirada da série Processos de Jussara Marangoni apresenta uma página de livro, trabalhada em técnicas mistas sobre papel, onde ela “molda” e estrutura o texto de acordo com seu interesse. Aqui, tem-se a questão: “Quem é?” e logo em seguida as respostas: “– Eu sou aquele que é. – Eu sou aquele que existe. – ... E estou vendo o que será.” Essa obra foi escolhida para provocar o observador de forma que ele comece a refletir principalmente sobre as respostas apresentadas: quem é esse eu? Quem já foi esse eu? O mesmo? O que mudou? Aqui, pretende-se estimular o observador a colocar o seu eu como intérprete ativo das obras.
Élcio Miazaki cria então em Retroceder (2020) um relógio com mecanismo em sentido anti-horário. Apresentado em vídeo, o aparato funciona normalmente, mas ao contrário, como se refletido em um espelho dando a impressão de que está se voltando ao passado, questionando a própria dimensão do tempo. Curiosamente, o relógio marca as horas corretas, então logicamente continua-se a observar o tempo presente, entretanto essa reflexão se direciona para que tempo? Questiono o agora com um afastamento de uma lógica objetiva: no devaneio não há barreira temporal pois ele nos liberta da função do real.
Atentando-se a observação para o tempo, apresenta-se mais uma obra de Jussara Marangoni, Sem título (2019) agora da série raiz.veia.afluente. A técnica de aquarela sobre papel, fotografia e aquarela sobre parede mostra raízes que se orientam e emaranham em diferentes direções. Aqui, pensou-se em resgatar a imagem da raiz como uma referência do primitivo e da vitalidade da natureza. A forma dos veios, também remete diretamente ao corpo e as suas estruturas naturais e orgânicas que se conectam e formam a unidade humana. De que forma as raízes de origem pessoal e individual se conectam e influenciam o eu do presente? Há essa conexão? Ela é profunda ou superficial? Como se materializa ou se expressa no corpo as naturezas que são individuais? Esses e outros questionamentos pretendem ativar diferentes temporalidades para que a consciência do eu objetivada comece a se manifestar em um sentido particular e único.
Temos então, Crisálida (2012), de Ana Luísa Santos. Essa performance representa para a proposta, paradoxalmente, o rompimento das amarras sociais que moldam, limitam e aprisionam a expressão das individualidades e subjetividades do eu e o consequente “retorno ao ninho”. A partir dessa consciência corporal e o apoderamento desse corpo no espaço, a artista se auto revela, da ausência à exposição total, em uma condição de vulnerabilidade latente, mas que anuncia notoriamente a liberdade e segurança pelo simples fato de ser e se reconhecer humana em seu corpo, em si mesma.
A obra Espelho (2014) de Marina Weffort, feita com tecido desfiado e fixado por alfinetes, dá sequência à proposta simbolizando a tomada de posse do eu por ele mesmo. O próprio título da obra instiga um devaneio sobre a reflexão, tanto em seu sentido físico quanto psíquico: quando se olha no espelho, vê-se o corpo de quem se é. Retoma-se aqui o questionamento feito por Marangoni, “Quem é?”, e que agora estimulado por uma maior sensibilidade pode ser feito de forma mais afetiva. Ao desfiar as linhas horizontais do tecido, Marina desencadeia uma nova organização na estrutura da trama que revela com delicadeza a complexidade do material e se associa aqui como característica de um corpo cuja superfície é sensível e por isso, livre para criar e explorar as suas múltiplas possibilidades. Cada ser é único, mas é também plural.
Pensando-se agora neste corpo sensível, livre e disposto a usufruir do seu próprio ser, apresenta-se a obra Coito Solar (2015), de Lume Ero. A artista trabalhou a composição com uma pedra sabão e um cristal de quartzo sobre uma folha de papel branco e uma película LCD disposta sobre a pedra e sob o cristal. É um trabalho fotográfico experimental onde trabalhou-se o “afetar” de um objeto sobre o outro pela iluminação solar. A capacidade de afetar e ser afetado reconhece o corpo e as relações como formas cognitivas e significativas, que aproximam e vinculam as emoções às experiências. Com esse trabalho, pretende-se relacionar o movimento de influência dos afetos como alternativa de reconhecimento e entendimento não só do corpo, mas também da história e temporalidade em que ele está inserido.
A obra Despertar (2020) de Jacke Batista é um autorretrato fotográfico em que a artista com o uso do seu próprio corpo busca narrar suas próprias histórias. A escolha dessa obra representa para o conceito da exposição o significado de seu próprio título: fazer sair de um estado de inércia ou inatividade; tornar-se presente. Na fotografia de Jacke, vê-se um corpo em movimento que parece se levantar. Devido ao tempo de exposição captado pela máquina é possível ver nuances desse movimento que gera até mesmo uma abstração do corpo da artista. Esse despertar pode ser entendido como a apropriação simbólica da identidade pelo ser. O eu torna-se ativo após retornar-se a si mesmo.
Para encerrar a exposição, foi escolhida a instalação Onirical Reflections (2012) da artista Anaísa Franco. Constituída por uma caixa de madeira, computador, projetor, espelho, software específico e um aparelho de Kinect, a obra é uma escultura interativa que utiliza o rosto do usuário como tela de pintura para expansão dos sentidos. Essa obra propõe uma experiência onde animações são projetadas e mapeadas na face do usuário que as vê através de um espelho. A intenção em finalizar a narrativa com esse trabalho é justamente colocar o observador diante de si mesmo depois da reflexão proposta para que ele possa se olhar a partir de uma nova perspectiva. A interação com essa interface tecnológica intente ampliar os sentidos para que as experiências aconteçam em um lugar que é reconhecido através do corpo.
A aproximação dos conceitos apresentados com as obras de arte objetivou a criação de espaços para que os devaneios do eu sobre si pudessem ser desencadeados. A indiferença contemporânea às subjetividades devem ser fortemente combatidas e através da experiência estética, a mente e os pensamentos podem usufruir de sua liberdade em estado puro, sem que estejam viciados em padrões ou convenções, sejam estes sociais ou culturais. As oportunidades de captar novas e diferentes realidades, visíveis e invisíveis, só dependem da intensidade que cada um se dispõe a olhar: a si e ao mundo.
Epílogo ou algumas considerações teóricas
A proposta curatorial Casa Corpo, Corpo Ninho busca entender a experiência perceptiva como uma ferramenta capaz de acionar e estimular os processos sígnicos. Foi desenvolvida como um desdobramento de pesquisas no campo da arquitetura e da semiótica, realizadas respectivamente na graduação e especialização. A partir de reflexões sobre a experiência alienada do espaço contemporâneo, um conjunto de símbolos foi explorado para que através de pensamentos artísticos, fossem criados deslocamentos, ou seja, novas narrativas que se abrem para devires. O corpo é análogo ao ambiente espacial, portanto, infinitas são as possibilidades de criação de sentido. Ao se aprofundar no conceito de lugar, Norberg-Schulz (2008) o caracteriza como um “interior”, devido à construção humana dos cercamentos como estratégia de delimitação do espaço. Assim, “os lugares contém aberturas através das quais se ligam com o exterior” (NORBERG-SCHULZ, 2008, p. 448). Pensando-se no lugar como um campo perceptual e o corpo como fronteira, ou seja, limite entre o interior do ser e a vivência da espacialidade, têm-se as relações criadas, cujos significados representam modos de ser e estar no mundo.
Schulz (2008) então afirma que para que essa relação entre homem/lugar constitua uma base de apoio existencial, ela depende de duas capacidades humanas: orientar-se e identificar-se. Essa proposta curatorial propõe então o “retorno ao ser” como um caminho para essa re-identificação. A partir de fenômenos sensíveis como o devaneio e o uso da imagem do ninho, ambos conhecidos pelas experiências da vida cotidiana, busca-se olhar para o implícito, o que se olha mas não se vê evidentemente. Baseando-se nas obras de artes visuais selecionadas, pretende-se fazer uma articulação estética com essa reflexão teórica a fim de se ativar subjetividades e potencializar um reconhecimento do eu em si e no mundo.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Agripina E. A. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina: EDUEL, 2008.
BATISTA, Jacke. Despertar. 2020. 1 fotografia. 50 x 75 cm. Impressão papel fine art photo rag. Disponível em: <https://jackebatista.46graus.com/loja/despertar-3-GQV5301> Acesso em: 10 set. 2020.
CHAUVIN, Irena Depetris; TACCETA, Natalia; Giro afectivo y artes visuales: Una aproximación interdisciplinaria sobre América Latina; Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual; Imagofagia; 16; 10-2017; 357-370.
ERO, Lume. Coito Solar. 2015. 2 fotografias. 30 x 42 cm. Acervo pessoal de Lume Ero.
FRANCO, Anaísa. Onirical Reflections. 2012. Caixa de madeira, computador, espelho, programa específico, Kinect. Disponível em: <http://www.anaisafranco.com/oniricalreflections> Acesso em: 10 set. 2020.
MARANGONI, Jussara. Sem título, Série Processos. 2018. Técnica mista sobre papel. 19,5 x 23 cm. Disponível em: <https://www.jussaramarangoni.com/fotografia-colorida> Acesso em: 10 set. 2020.
MARANGONI, Jussara. Sem título, Série raiz.veia.afluente. 2019. Aquarela sobre papel, aquarela sobre parede, fotografia. Dimensão variável. Disponível em: <https://www.jussaramarangoni.com/copia-serie-entrelinhas-1> Acesso em: 10 set. 2020.
MIAZAKI, Élcio. Retroceder. 2020. Vimeo. 2’56’’. Disponível em: <https://vimeo.com/441835472> Acesso em: 10 set. 2020.
MUNIZ, Guto. Crisálida. 2012. 2 Fotografias. Disponível em: <https://anasantosnovo.com/CRISALIDA> Acesso em: 10 set. 2020.
NORBERG-SCHULZ, Christian. “O Fenômeno do Lugar”. In: NESBITT, Kate. Uma Nova Agenda Para a Arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2ª ed. rev., 2008.
SANTO, Leandra Espírito. Sem título. 104 cabeças de gesso feitas à partir de molde do rosto, distribuição em grade. 3,5 x 3,5 m. Disponível em: <http://leandraespiritosanto.net/> Acesso em: 10 set. 2020.
WEFFORT, Marina. Espelho. 2014. Tecido desfiado e alfinetes. 183 x 113 x 9 cm. Disponível em: <http://galeriamariliarazuk.com.br/artistas/marina-weffort> Acesso em: 10 set. 2020.
________
Julia Zanon
Arquiteta e urbanista especialista em História da Arte pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Seus interesses de pesquisa se concentram nas investigações sobre espaço, memória e corpo.
Esta curadoria em rede foi selecionada via chamada aberta.
Comments