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O Festival ORIGRAFFES: Pensando o graffiti como gatilho social e educacional

Ensaio por Aislane Martins Gomes¹ e Josy Pereira Silva²


Resumo: Este ensaio apresenta a linguagem do graffiti como um elemento de arte urbana e a linguagem de pintura pelo prisma educacional a partir de um viés social. Relata o olhar de um artista capixaba através do Festival ORIGRAFFES que acontece anualmente no estado do Espírito Santo, na cidade de Serra, bairro Feu Rosa. Esse Festival é um movimento organizado e executado na praça principal do bairro e em uma escola, com a colaboração e apoio da comunidade.


Palavras Chaves: Arte. Cultura. Educação. Graffiti. Arte Urbana.


 

INTRODUÇÃO


O graffiti já se estabeleceu como uma manifestação artística há tempos, trata-se de uma linguagem que democratiza o acesso à arte e a cultura, no entanto, ainda hoje é demasiadamente marginalizado. Starley Bonfim Silva, artista capixaba, diz que o graffiti é

Inegavelmente, uma linguagem artística atrativa que fascina pessoas de todas as idades, crenças e etnias, tornando-se assim, uma das manifestações artísticas mais inclusivas e democráticas existentes apesar de ainda ser marginalizado em alguns setores e nichos sociais (SILVA, 2019, p. 09).

Imerso na cultura hip-hop, o graffiti proporciona acesso a arte e cultura nas periferias das megalópoles como poucos conseguiriam. Portanto, falar dessa linguagem no contexto escolar, contribui para aproximar os contextos sociais dos indivíduos dos conteúdos programáticos.


Nesse sentido, partimos da experiência de participar como observador em imersão do Origraffes em todas as suas edições, o que contribuiu para a elaboração deste relato. Ressaltamos que nossa participação no GEPAE/LEM³ foi fundamental, pois o grupo de professores pesquisadores propôs para as ações do ano vigente, a conexão com as produções artísticas e culturais capixabas com o objetivo de valorização do que tem sido criado e apresentado no Estado.


O Festival já está em sua 4º edição anual, reunindo grafiteiros, artistas urbanos de todo o país e até internacionais, mobilizando muitas pessoas a lançarem seus olhares para o estado do Espírito Santo, mais especificamente para o bairro Feu Rosa, no município de Serra.


Além da participação do público, que se envolve nos bate-papos, workshops, também acontecem atrações musicais, batalhas de breaking e de MC's. O Origraffes realiza “o intercâmbio e a dilatação do senso de coletividade entre bairros e cidades nas quais o evento repercute, alcançando cada vez mais novos adeptos e ativistas” (SILVA, 2019, p. 13).


Pensando a cultura como uma reunião de ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais assimilados e desenvolvidos por meio da vida em sociedade, o termo cultura hip- hop, se refere ao conjunto de ideias, comportamentos e práticas sociais comuns a esta estrutura. A cultura não se limita a um movimento artístico pois se conecta ao político, histórico e social, criando e contando histórias de uma comunidade, dando-lhe voz e protagonismo.


CONTEXTUALIZANDO O GRAFFITI


“As pessoas que mandam nas cidades não entendem o graffiti porque acham que nada tem o direito de existir se não gerar lucro, o que torna a opinião delas desprezível” (BANKSY Apud SILVA, 2019).


Iniciamos essa parte do texto com a citação de Banksy para ilustrar o breve contexto histórico do graffiti no mundo e como essa linguagem artística desempenha um papel político tão potente, por todo o mundo.


Os anos 1960 [destacando-se o ano de 1968] foram marcados por movimentos populares com protestos e manifestações políticas na Europa, Estados Unidos e aqui no Brasil não foi diferente dado o momento político que vivíamos de cerceamento de direitos e de liberdade. E é nesse contexto que surge o graffiti como forma de protesto. Adolescentes americanos deixavam suas marcas nos vagões dos trens nova-iorquinos e fachadas de prédios, manifestantes franceses inscreviam reivindicações nos muros parisienses e brasileiros, principalmente os paulistas, pichavam os prédios como atos políticos principalmente contra o regime militar instaurado.


Nesse sentido, a linguagem emerge como um movimento ilícito, com grande difusão mundial nos anos de 1970. No Brasil, os paulistas encabeçam as produções intensamente, tornando-se referência. Papali (2017) se refere ao primeiro registro de pichação como arte no Brasil e que o início da street art brasileira seria a inscrição “Abaixo a Ditadura”, que se tornou icônica no país (figura 1).


Figura 1 - Registro do que seria um dos primeiros pixos. Pichação “Abaixo a ditadura” (1968).

As inscrições eram feitas de forma rápida, com frases curtas e simples, utilizando o piche como tinta, daí a terminologia pichação cunhada por grafiteiros brasileiros. A agilidade era necessária dada a característica de vandalismo ligada a expressão e a repressão policial na época, no entanto a discussão do graffiti como arte ou vandalismo persiste até hoje.


Segundo Rui Amaral, grafiteiro e um dos precursores do graffiti paulista, o tratamento dado como arte ou vandalismo reflete o modo como cada gestão pública entende essas intervenções urbanas. Na década de 1980, houve solicitações à gestão política paulistana para fazer intervenções na avenida 23 de Maio, no entanto, as mesmas foram autorizadas somente no fim de 2016. A despeito desse assunto, seria necessária abrir outra discussão sobre o graffiti demandar autorização ou não para se constituir como linguagem artística, parte da paisagem urbana, o que não trataremos nesse texto, pois entendemos que “[...] a alma do grafite é interagir com a cidade livremente” como bem expressa Jaime Prades (In MODELLI, 2017), outro artista paulista. O poder público insiste em impor regras para o graffiti, essa linguagem ainda é vista como poluição visual, e neste caso, concorre com os outdoors comerciais.


O graffiti evoluiu técnica e poeticamente, abrindo espaço para garantir seu lugar na arte. Com o passar do tempo, os grafiteiros ganharam o título de artistas e foram para dentro de espaços institucionais. Surgiram questionamentos sobre como podemos considerar um trabalho artístico feito em um local informal? Ou uma obra ilegal, é arte? E também, como um artista pode levar para dentro de um espaço institucional o graffiti sem que ele perca a sua essência de rua? Essas são algumas das indagações que ainda se repetem ao longo de discussões sobre o tema e que nós como professoras também somos indagadas pois, definitivamente, o graffiti é parte de nossos conteúdos programáticos.


Como manifestação que nasceu nos guetos e periferias, em forma de subversão, o graffiti se fortalece na possibilidade de dar voz e emancipação aos sujeitos, junto a outros elementos como o Rap (Rhythm and Poetry), Ritmo e Poesia, que se ampliam para a cultura hip-hop, tendo como principal base cinco elementos (Break Dance, DJ, MC, Graffiti e o Conhecimento). “Quem tem ‘a caneta’ escreve a História e o artista urbano também disputa este espaço das cidades para escrever a sua própria perspectiva histórica” (SILVA, 2019 p. 72).


Para além da dimensão como linguagem artística, das discussões em torno dos questionamentos sobre a institucionalização do graffiti como arte, é necessário reconhecermos os aspectos sociais que envolvem as produções, o que demanda pensá-lo no âmbito escolar. Em que momento está sendo tratado o graffiti como linguagem artística dentro dos conteúdos programáticos da disciplina Arte nas escolas? E, de que forma os professores abordam o tema para contribuir ou não com a disseminação positiva dessa linguagem? Esses são questionamentos em torno da discussão graffiti - arte urbana - educação. Nesse contexto, um dos principais Festivais de graffiti vem se firmando positivamente, ganhando espaço nas agendas de artistas urbanos e visibilidade nacional, quiçá, internacional de produção de arte de rua, da cultura hip-hop com graffiti e seus desdobramentos.


O FESTIVAL ORIGRAFFES


O Festival Nacional de Graffiti – Origraffes [Original Graffiti Espírito Santo], teve sua primeira edição em 2016, mobilizado pelo coletivo F.G.Crew tendo como objetivos principais a

[...] representação de universo agregado com o repertório cultural local por intermédio da cultura Hip-Hop, tendo como principal eixo temático o Graffiti, onde são realizadas pinturas colaborativas executadas por mais de 200 artistas de todas as regiões do Brasil, além de artistas Espírito Santenses, em espaços públicos e privados, criando um diálogo e intercâmbio, não só entre os participantes mas também entre as pessoas que transitam no espaço urbano | comunitário (EQUIPE ORIGRAFFES, 2019)

O coletivo F.G.Crew, nossa principal referência para esse texto, participa, organiza, planeja e desenvolve uma semana de atividades intensas para que o Origraffes aconteça. São workshops, formações, apresentações musicais e atrações culturais. Silva (2019) contribui conosco relatando como surgiu a ideia para desenvolver o ORIGRAFFES.

[...] em 2016 havíamos aprovado dois projetos em dois editais de cultura, um na SECULT-ES e outro em uma lei de incentivo fiscal do município de Serra, chamada Lei Chico Prego. Após a execução destes dois projetos tínhamos um excedente de materiais de pintura (Latas de Sprays). Este material seria dividido entre os componentes do coletivo, (eram cerca de 250 tubos). Na época, fazíamos planos sobre como iríamos utiliza-los, trabalhos que poderíamos realizar e potencializar nossa produção artística, mas foi aí que me veio um "estalo", de que aquele material poderia ter uma outra finalidade, algo que incorporaria de forma emblemática o nosso pensamento em prol da coletividade e para a cena do Graffiti capixaba. A ideia inicial era de colocar uma caixa de som na rua, fazer um churrasco e convidar os artistas que tínhamos mais afinidade para confraternizar pintando. O material para fazermos as pinturas seria igualmente dividido entre todos. À medida que fui amadurecendo a ideia pensei: - “Por que não agregar outros elementos nessa festa?” Inserindo no corpo da proposta os outros elementos da Cultura HIP-HOP (Break Dance, DJ e MC), nos dias 16 e 17 de julho de 2016, transformamos a simples ideia que partiu do sentimento de partilha em dois dias de pura confraternização e entretenimento para a comunidade de Feu Rosa na Serra (SILVA, 2019, p. 80).

É notável a característica de cunho social partindo do coletivo, própria dos movimentos de periferia e de mobilização comunitária, com a intenção de partilha, de comunhão das ideias, das produções artísticas e culturais.


Figura 2 – Painel Origraffes 2018 – Essa senhora representada sob a bandeira do ES, é a cozinheira da escola que prepara as refeições para os participantes do evento. Arquivo das autoras.

O município de Serra está cotidianamente em destaque nos telejornais e noticiários locais e nacionais como lugar de violência. O bairro que recebeu as quatro edições do Festival é um dos mais violentos da Grande Vitória. No entanto, o que observamos nos dias que acontecem o evento é exatamente um esforço coletivo para visibilizar o que a região tem de melhor. O coletivo faz a diferença naquele local e consegue mostrar as entranhas do bairro através da voz, dos riscos nos muros e da expressão de vários artistas unidos para o mesmo fim.


RELATO DE EXPERIÊNCIA


Estivemos presentes no evento em suas quatro edições e circulamos pelos quarteirões do bairro Feu Rosa, contemplando diversos artistas urbanos produzindo, variadas linguagens dentro da cultura hip-hop sendo exibidas e realizadas, as batalhas de Break, Rap, os DJ’s mandando um som, as pinturas dos murais coletivos. Isso desperta em nós uma sensação de empoderamento como um grito dos excluídos ao assistirmos um bairro condenado pelas páginas policiais emergir com arte e cultura para que meninos e meninas possam presenciar uma arte viva, possível e palpável. É emocionante.


Durante o evento podemos observar que os artistas se mostram disponíveis para explicar as técnicas que empregam em seus trabalhos, tanto para grupos que visitam o evento quanto para pessoas que se interessam por passar no local.


Há muitas técnicas de graffiti e, atualmente, os trabalhos em 3D chamam a atenção. Pode-se observar também o estêncil em que se utiliza o papel recortado como molde e o spray para fixar as ilustrações e desenhos, os autocolantes e colagens, conhecidos também como chamado de sticker art. Com tantas técnicas, as produções vão se multiplicando e são instaladas em diversos pontos da cidade. Essas técnicas se tornam mais vivas quando vivenciadas diretamente pelos espectadores, seja nas oficinas oferecidas durante o Festival ou em uma troca de ideias.


Ainda que tenha sido com um grupo pequeno e de maneira informal, a professora Josy Pereira, uma das autoras e regente da disciplina Arte em instituição de ensino da rede privada de Vila Velha, teve a oportunidade de visitar o espaço e experienciar os trabalhos do Origraffes com um grupo de crianças e adolescentes, com idades que variam entre 10 a 14 anos. Ela relata que os momentos de aproximação entre os processos de conhecimento, se deram de forma mais enfática no contato direto com os artistas, em diálogos diretos sobre o processo de criação.


Segundo a professora, o grupo de estudantes se tornou protagonista no ato de fruir e nutrir-se do conhecimento artístico, cultural e social. Esse protagonismo se deu pela curiosidade de aprender e pela liberdade que os artistas do evento davam ao espectador, para perguntar e tirar dúvidas durante o processo de criação das obras, desde o primeiro risco até a finalização, o acabamento do mural. Ver meninas graffitando, rimando, dançando, organizando o evento foi importante para os sujeitos entenderem que o graffiti é lugar de todos.


A aproximação com outra realidade social e o contato com o outro foram aspectos que mudaram o ponto de vista do grupo, dando outra perspectiva sobre o que escutaram e leram sobre o bairro. Não eram mais ouvintes, mas sujeitos no ato de experienciar o bairro e suas peculiaridades, de aprender no convívio com o outro. Acreditamos que os momentos de aprendizado não acontecem somente na escola, mas de forma contínua e sem amarras.


Figura 3 – Grupo de estudantes caminhando entre os participantes do evento. Arquivo das autoras.

A colaboração e parceria entre os artistas e a comunidade, foram os aspectos que chamaram atenção no decorrer do evento, assim como a diversidade de pessoas originárias de diferentes regiões do Brasil, dedicando seu tempo para produzir arte cultura, partilhar e viver aquele momento no Origraffes, um processo gigantesco de conhecimento, que se refletia em novas descobertas a todo instante pelo olhar dos estudantes. Considerando o ambiente e toda a experiência adquirida no espaço, acreditamos nesse espaço de convivência como grandes norteadores para os processos de aprendizagem, o que nos faz refletir sobre o processo de educar.


O papel da educação formal e informal na formação do indivíduo é o de mediar as várias esferas da vida na prática social, ampliando o olhar para o outro e adquirindo conhecimento frente à diversidade, fomentando respeito numa sociedade cada vez mais complexa.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


O graffiti é uma linguagem artística que desperta reações apaixonadas, tanto positivas quanto negativas e continua fascinando fruidores de todas as idades. É nítido o crescimento recente da arte urbana em nossos municípios, de maneira que passa a ser vista como um valor cultural importante para as periferias que enxergam sua realidade representada.


Em relação à imersão no Origraffes, entendemos que o aprendizado é muito mais eficiente quando experimentado, seja por alunos, professores ou por uma comunidade. Aprender é um ato prático que demanda reformulação sobre as relações de aprendizagem sem juízo de valores sobre o ato de aprender. Temos ainda diversos questionamentos e apontamentos que este texto não aborda nem aprofunda, por entendermos tratar-se de uma temática que mobiliza discussões acaloradas e que por isso mesmo, merece novas imersões em futuros Festivais Origraffes.


 

Notas de rodapé ¹ Pedagoga na função de regente de classe em 2019, em Instituição Educacional da rede privada de Vila Velha. Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo. ² Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo. ³ Grupo de Estudos e Pesquisas do Arte na Escola/ Polo Faculdade Novo Milênio, parceiro do Laboratório de Educação Museal no ciclo 2019. ⁴ “Substância de coloração negra, excessivamente grudenta, de textura resinosa e gomosa, obtida a partir da destilação do alcatrão e da terebintina.” Verbete disponível em <https://www.dicio.com.br/piche-2/>. Acesso em: 30 out. 2019. ⁵ Em entrevista para a BBC em 28 de Janeiro de 2017.

 

Referências bibliográficas


BBC News. Cidade como tela: a explosão do grafite em NY. Disponível em:

<https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2014/04/140421_galeria_grafite_ac_lg b>. Publicado em: 21 abr. 2014. Acesso em 25 ago. 2019


MODELLI, Lais. De crime a arte: a história do grafite nas ruas de São Paulo. 28 jan. 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38766202>. Acesso em 31 out. 2019.


PAPALI, Frederico. Um pouco da história do graffiti e da pichação no Brasil. XXIV Simpósio de História Nacional. UNB: Brasília, 2017. Disponível em:

<https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1489079130_ARQUIVO_Umpoucod ahistoriadograffitiedapichacaonoBrasil.pdf>. Acesso em: 31 out. 2019.


SEVERINO, Joaquim Antônio. Metodologia do trabalho científico [livro digital]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2013.


SILVA, Starley Bonfim. O Graffiti como processo de educação: Cartografia de um percurso criativo / educativo. Trabalho de Graduação. Espírito Santo: UFES, 2019.


 

Aislane Martins Gomes


Graduada em Artes Visuais pela UFES e licenciada em Pedagogia pela Doctum. Atua como professora de Arte em escola da rede privada de Vila Velha e da Prefeitura Municipal de Serra com turmas desde a Educação Infantil ao Ensino Médio. Integrante do Grupo LEM como pesquisadora. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação em Periferias Urbanas, atuando principalmente nos seguintes temas: tradição, cultura, diversidade, congo capixaba e arte urbana.


Josy Pereira Silva


Nascida em Conselheiro Pena, MG. Mediadora, pesquisadora e Professora de Artes graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na escola CEEFM Assisolina Assis Andrade no ensino Fundamental 2 e Médio. Integrante do Grupo LEM. Como pesquisadora tem interesse pelos espaços culturais, manifestações e eventos, os artistas em solo Capixaba e suas interpretações sobre o Espírito Santo.


Este ensaio foi selecionado via chamada aberta.

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